
Em breve nas telas, uma minissérie ousada pretende recontar — com profundidade e sob novos olhares — a trajetória de Ângela Diniz, socialite mineira cuja morte em meados dos anos 1970 se tornou símbolo de um país ainda resistente à noção de violência doméstica. A produção, com seis episódios, reúne elenco e equipe de peso e assume o desafio de revisitar essa ferida cultural com consciência dramática.
No papel-título, a atriz Marjorie Estiano assume Ângela Diniz, que rompeu convenções ao divorciar-se e buscar independência numa época em que tais escolhas resultavam em estigmas e julgamentos. Seus passos — pessoais e públicos — serão mostrados até o desfecho brutal: o assassinato cometido pelo namorado Doca Street, que recorreu à tese da “legítima defesa da honra” em sua defesa. A série não se limita à reconstituição dos fatos, mas pretende provocar reflexão acerca das bases sociais e legais que ainda moldam as narrativas de gênero.
A direção caberá a Andrucha Waddington, com roteiro de Elena Soárez, Pedro Perazzo e Thais Tavares. No elenco coadjuvante, destacam-se Emílio Dantas no papel de Doca Street, e Antônio Fagundes como o advogado Evandro Lins Silva, que assumiu a defesa do acusado no processo original. A produção promete costurar cenas íntimas, disputas jurídicas e o pano de fundo de uma sociedade em transformação — mas inserida em marcos culturais atrasados.
Embora a série estreie em plataforma de streaming, reserva abertura simbólica em um festival de cinema, como forma de honrar a dimensão pública da narrativa. Tal gesto também reforça a noção de que este é um produto cultural que atravessa fronteiras entre entretenimento e memória coletiva.
O crime de Ângela Diniz marcou os tribunais brasileiros: a tese de defesa adotada por Doca Street conseguiu amortecer a punição, e ele cumpriu apenas parte da pena, conquistando liberdade sob aplausos de parcela da sociedade. O caso se tornou marco para o movimento feminista e símbolo das lacunas da justiça diante das violências contra mulheres. Rever esse momento, em pleno presente, é também revisitar as falhas persistentes de um sistema que ainda se esquiva de responsabilização plena.
Os criadores afirmam que a série busca romper com o sensacionalismo e o voyeurismo: a ideia é narrar com empatia e crítica, dar voz aos afetos e aos silêncios, iluminar a subjetividade de Ângela como protagonista de sua vida — não apenas vítima de um crime. Também pretende colocar em diálogo a mídia da época, os debates jurídicos e as reações sociais da época com as de hoje.
Em sua proposta estética e dramatúrgica, a série funciona como espelho: confronta o espectador com tensões que ainda persistem — a naturalização da violência simbólica, o julgamento do estilo de vida feminino, o impacto da opinião pública sobre processos judiciais. As fronteiras entre vítima, culpado, herói e vilão são aqui problematizadas.
Quando um crime do passado é recontado, não se trata apenas de reviver um acontecimento — é também um exercício de memória: que escolhas narrativas serão feitas? Quais vozes serão ampliadas, quais recortes serão omitidos? Esta série ambiciona ser mais do que entretenimento: aspira ser um ponto de inflexão no diálogo nacional sobre violência contra a mulher, justiça e memória.
A expectativa é que o público não apenas acompanhe um drama de época, mas saia dele questionado — sobre como, e por que, ainda resistimos a ver com clareza o impacto das desigualdades de gênero em nossas instituições.